(Artigo publicado no Correio do Povo de domingo, 26/12/10)
A Argentina é o país da América Latina onde a ditadura militar teve seu período mais negro. São cerca de 30 mil mortos ou desaparecidos, segundo as organizações de direitos humanos. Um dos grandes responsáveis por esse nefasto período foi o general Jorge Videla, que assumiu a presidência após a derrubada do governo democrático de Maria Estela Martínez de Perón, em 24 de março de 1976. Pois Videla, mais uma vez, foi chamado a comparecer perante um tribunal para ouvir uma sentença. E, mais uma vez, ouvir, prisão perpétua. Ele já havia sido condenado a tal em 1985, mas, em 1989, recebeu indulto do então presidente Carlos Meném.
Nesta terça-feira Videla compareceu de novo ante o tribunal. O ex-ditador argentino de 85 anos assumiu a responsabilidade por crimes políticos cometidos no país entre 1976-83, ao final de um julgamento sobre o fuzilamento de 31 presos políticos em Córdoba. Depois apontou para o governo da presidente Cristina Kirchner, assinalando que as organizações armadas dissolvidas “não mais precisam da violência para chegar ao poder, porque já estão no poder e, daí, tentam a instauração de um regime marxista à maneira de Gramsci”, numa referência ao teórico marxista italiano Antônio Gramsci.
Julgar e condenar os responsáveis pelo nefasto período da ditadura passou a ser uma determinação dos argentinos. Diferentemente do que ocorre no Brasil. É claro que o que ocorreu por aqui foi insignificante perante o ocorrido na Argentina, ou mesmo no Chile e no Uruguai. Muito embora tenha havido mortes e tortura e, como tal, os autores deveriam ser responsabilizados. Mas na Argentina, como nos demais países da região, a guerra suja não foi uma via de uma só mão. A sujeira se deu de ambos os lados. É claro que pesou muito mais sobre os militares. Afinal foram responsáveis por campos de concentração, por obtenção de depoimentos mediante tortura e pela realização dos chamados “vôos da morte”.
Na “guerra suja” travada na Argentina ninguém foi santo. Isto porque, naquele país a guerrilha de esquerda estava muito bem estruturada, com dois grandes movimentos, os “Montoneros” e o ERP, Exército Revolucionário do Povo. O primeiro grupo tinha a forte liderança de Mário Firmenich, nascido em Buenos Aires, em 1948, e responsável por uma série de atos, como o seqüestro o ex-presidente Pedro Aramburu e o seu subseqüente assassinato, num ato em que não teve direito de defesa, nos famosos “julgamentos populares”. Este episódio ocorreu em maio de 1970, portanto, antes do golpe militar. Depois do golpe, Firmenich refugiou-se em Cuba, onde organizou uma malfadada tentativa de derrubada do regime militar, em 1979. Foi a chamada “contra-revolução popular”, que resultou na morte das principais lideranças dos Montoneros. Já sob o governo constitucional de Raúl Alfonsín, Firmenich foi capturado no Brasil. Julgado em seu país, foi condenado a 30 anos de prisão. Mas, em 1990, teve a pena abolida, num segundo indulto concedido por Meném. Ou seja, depois daquele que beneficiara Videla.
Assim é que tanto a guerrilha como a ditadura militar ultrapassaram os limites do que poderia ser considerado uma guerra convencional. Os militares destacaram-se pela tortura praticada na tristemente célebre Escola de Mecânica da Marinha. Muitos contestadores do regime morreram ali, entre aquelas paredes, e seus corpos foram lançados no Rio da Prata ou em alto mar. Daí, o extraordinário número de desaparecidos. Outra herança nefasta: as crianças que foram arrancadas dos braços de suas mães e entregues a outras famílias, quase sempre de militares, para serem criadas. Isto, até hoje, tem gerado problemas, com filhos que desconfiam de seus pais. Sendo que alguns conseguiram descobrir sua própria origem, tendo abandonado a família que os criou. Outra tática usada pelos militares para eliminar os opositores, era transferi-los de uma prisão para outra. No caminho, faziam uma parada e facilitavam a fuga. E aí metralhavam. Não menos sujas foram as ações dos guerrilheiros, com assaltos a bancos, seqüestros, extorsões e assassinatos. Não me esqueço de um episódio em que uma jovem guerrilheira ganhou a amizade da filha de um militar, a ponto de passar a freqüentar a sua casa com assiduidade. Numa dessas idas, ela colocou explosivos sob a cama do casal, que foram detonados à noite, enquanto o casal dormia.
Essa confrontação na Argentina, que se deu também no Brasil, Uruguai, Chile e outros países da região, ocorreu no período áureo da Guerra Fria, ou seja, da confrontação entre o capitalismo, liderado pelos Estados Unidos, e o comunismo, sob o comando da então União Soviética. Os EUA queriam sustentar por aqui o regime capitalista, até porque a região era chamada de o seu quintal. Os soviéticos, que já tinham cravado seus tentáculos em Cuba, queriam ramificá-los pela região, com os ditos regimes populares, ou “a ditadura do proletariado” na expressão marxista. Regimes que, como se viu, sucumbiram na própria União Soviética e nos seus satélites do Leste europeu. Só sobrevive hoje no falido regime de Cuba, que está tentando se abrir ao mercado, como fez a China, para sair da ruína.
Então, é preciso salientar que tínhamos de um lado a nefasta ditadura militar, que não se quer nunca mais, e de outro, aqueles que, na inocência de sua juventude”, acreditavam que o regime comunista era a salvação. Ou seja, queriam tirar o país de uma ditadura para colocá-lo em outra. Não era diferente o sentimento aqui no Brasil.